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Rita Wu, Arquiteta e Designer, fala sobre movimento maker e a tecnologia, a partir da sua visão sendo mulher atuante nessas áreas. Para ela, a tecnologia digital pode ser um caminho para não precisarmos formatar tanto as pessoas e removermos essa necessidade de dividir a sociedade em várias categorias. Também falamos a respeito da relevância de se terem mulheres em campos majoritariamente masculinos, e sobre as dificuldades ainda vividas por elas.

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"Acho que as tecnologias digitais vem pra tirar essa necessidade de ficar dividindo a sociedade em várias categorias diferentes, desde as questões relacionadas à biologia, à fisiologia, a genêro, questões relacionadas à profissão, isso tudo tem mudado muito também. Eu espero que a tendência seja parar de separar as pessoas tanto e começar a conviver nessa diversidade aceitando que cada um é cada um."

"No campo da tecnologia, isso não é diferente, porque você dominar conhecimentos, principalmente conhecimentos tecnológicos, faz com que o seu poder aumente muito mais, então, sempre foi uma área que tinha poucas mulheres."

"É quase como se o apagamento disso proporcionasse um maior controle dos homens em perpetuar isso, afinal, perder privilégios não é fácil, então a gente acaba não tendo ajuda para que essas mulheres sejam mais conhecidas."

"Acho importante a gente pegar isso que nos torna mais frágeis, diante de todas essas adversidades, e conseguir fazer disso a nossa força, que aí que a gente começa, enquanto mulheres, a se unir, colaborar e ajudar umas as outras."

Você é sócia-fundadora do FABLAB e tem uma trajetória dentro do movimento maker. O que te levou a se interessar por essa área?

 

Foi durante a graduação: eu comecei a fazer uma iniciação científica sobre habitação social, que é feita basicamente, como toda construção civil, de concreto armado ou alvenaria estrutural. E durante o processo desses estudos eu pensei sobre o por quê, nós, arquitetos, temos que ficar fazendo esse “Ctrl C” + “Ctrl V”  de plantas, e as pessoas sempre morarem em lugares muito parecidos, sem personalidade. A partir disso, eu comecei a pesquisar como que a gente poderia, com os mesmos custos (ou seja, não aumentar o que era gasto), dar um pouco de personalidade para esses projetos, e não ter que ficar replicando mil habitações no mesmo lugar, do mesmo jeito.

 

Foi aí que eu encontrei o design paramétrico e, como meio de viabilizar isso, a fabricação digital – que teria um custo inicial, mas, depois, isso seria dividido em todas as habitações. Quando eu encontrei o design paramétrico e a fabricação digital foi que eu entrei no mundo    das tecnologias digitais e, principalmente, no que, na época, se chamava de prototipagem rápida. As pessoas não falavam de movimento maker ou fabricação digital em si, mas falavam de um processo – usado por poucas pessoas – que era a prototipação rápida, então, esse era o conceito que era usado. E aí eu fui fazer minha segunda iniciação científica nessa área: foi quando eu entrei e basicamente comecei a pesquisar para a reitoria de graduação para implantar o que seria o primeiro maker space da USP.

 

Como surgiu a idéia da plataforma Technoporn?

 

O technoporn também surgiu através de inquietações pessoais, principalmente, a inquietação de ser mulher. Pelo menos na minha vida, por muito tempo eu meio que apaguei esse lado, eu tentava ser tipo um cara. Por sempre gostar da parte de tecnologia eu sempre estava no meio de muitos caras e também, sei lá, não queria ser mulher. Eu tentava apagar esse lado até na forma como eu me portava, como eu me vestia, utilizava o cabelo, coisas assim. Então, eu sempre tive algumas questões em relação a isso e, principalmente, esse ser mulher – e o que a sexualização do corpo da mulher estava inserida nisso – e eu tinha muitas questões com a sexualidade, é uma coisa que até me assustava um pouco.

Por conta disso, eu comecei a trabalhar questões relacionadas ao corpo e pensei em como juntar tecnologia, sexualidade, corpo e como a gente poderia melhorar as nossas relações: foi quando surgiu o technoporn. Então duas coisas me levaram a isso: as tecnologias digitais – quando começaram esses aplicativos de relacionamento foi uma coisa que deu uma mudada muito grande na forma que o primeiro aproach é feito e como as pessoas se relacionam mesmo – e também as tecnologias biológicas, porque, desde 2014, eu comecei a trabalhar com biologia sintética.

 

Se a gente pensar o sexo, ele existe, biologicamente falando, pra troca genética e para aumentar a variabilidade. Então, quando a gente faz uma mudança genética em uma bactéria, dentro do laboratório, meio que a gente está sexualizando com ela. Essas duas coisas se juntaram e  surgiu o technoporn: pra trazer um pouco essa discussão de como tecnologias analógicas, digitais, biológicas, químicas, mudam a nossa forma de se relacionar e de fazer sexo também.

 

O sexo high-tech, querendo ou não, vai influenciar a vida sexual de todos. Como evitar a perpetuação de estereótipos ligados à mulher nessas novas tecnologias?

 

Para ajudar a gente a dar conta do mundo, o homem criou categorias – pra ser mais rápido, cognitivamente falando – da gente achar e lidar com as coisas, então, “ah, eu sei que isso aqui é um abajur; eu sei que a cobra é um bicho que rasteja e é perigoso”. Nós fomos criando categorias para definir tudo a nossa volta. Então, chegou o momento em que a nossa sociedade evoluiu muito e começamos a criar categorias sociais – o que acabou complicando um pouco as coisas hoje em dia, já que não se tem essa necessidade tão grande de categorização – e, desde então, não conseguimos sair dessas caixinhas, desses nichos que as pessoas foram criando para si mesmas.

 

Com as tecnologias digitais, já não temos tanto essa necessidade, porque tem muita coisa que a gente facilitou pra nossa cabeça. Hoje, até com inteligencia artificial, machine learning, e outras coisas, a gente já não precisa ocupar esses espaços com isso. As tecnologias meio que vão ajudar, pelo menos essa é a minha esperança, a quebrar essas caixinhas, essas categorias que a gente criou. Então, mulher, o que que é mulher? Mas, aí vamos pras questões de gênero e acabamos encaixotando tudo de novo.

 

Acho que as tecnologias digitais vem pra tirar essa necessidade de ficar dividindo a sociedade em várias categorias diferentes, desde as questões relacionadas à biologia, à fisiologia, a genêro, questões relacionadas à profissão, isso tudo tem mudado muito também. Eu espero que a tendência seja parar de separar as pessoas tanto e começar a conviver nessa diversidade aceitando que cada um é cada um, que a gente tem uma diversidade imensa e sempre quando a gente tenta jogar as pessoas – “vem um pouquinho pra cá, porque você é tal coisa” – a gente força as pessoas a mudarem, a ser quem elas não são. Espero que as tecnologias ajudem a não termos que formatar tanto as pessoas, inclusive, até nos processos de educação, quando a gente fala sei lá, minha formação é em Design, mas, poxa vida, isso é só mais uma formatação. As coisas estão tendendo a diluir porque a gente vê que tudo está relacionado a tudo.

Então, ser uma designer, não significa que você tenha que estudar só coisas relacionadas a design – se você estudar biologia, isso vai abrir um leque de possibilidades de trabalhar com design, sustentabilidade, organismos vivos – o que é muito bacana. A gente vai percebendo que essas categorias não servem pra essas questões relacionadas ao gênero, ou como a gente performa na sociedade, para profissões e várias outras coisas.

 

Você comentou que o campo tecnológico é majoritariamente masculino. Por quê você acha que isso ainda acontece?

 

Acho que quase tudo ainda é um campo muito masculino, a não ser aquilo que sempre foi da mulher, como questões domésticas ou relacionadas à pedagogia. Tem algumas áreas que a gente encontra mais mulheres, mas, não é a maioria, principalmente quando pensamos em cargos de liderança. Isso também em qualquer área, inclusive, nas relacionadas às questões domésticas, pedagogia e outros campos que têm mais mulheres, ainda assim esses postos de liderança são ocupados por homens, porque, querendo ou não, o poder está relacionado à muitas questões financeiras, e nisso a gente sempre acaba excluindo a mulher, que sempre foi vista mais no campo da reprodução. Acho que até por isso o meu interesse na sexualidade, a gente sempre foi vista, praticamente, como um útero né – o ser que nos ajuda a dar continuidade às coisas como elas estão, tirando essa parte que a mulher está – todo o resto acaba sendo dominado por homens.

 

No campo da tecnologia, isso não é diferente, porque você dominar conhecimentos, principalmente conhecimentos tecnológicos, faz com que o seu poder aumente muito mais, então, sempre foi uma área que tinha poucas mulheres, por mais que tenha todo um processo de inserção cada vez maior de mulheres no campo tecnológico. Acho que todas iniciativas de mulheres na tecnologia são muito bem-vindas e acho que, mais do que isso, a inserção de mulheres na tecnologia é uma questão paliativa (como se colocar mulher tivesse resolvido a questão) sendo que muito mais do que só ter mulher – que no fim vai ser uma mão de obra como qualquer outra – a inserção da mulher tem que ir muito mais além, tem que mudar um pouco a cultura de como as coisas se dão dentro desses espaços.  E, querendo ou não, os espaços relacionados à tecnologia tem uma visão muito do masculino: uma visão muito de competição e não de colaboração. Se a gente for pensar, tem essa questão forte do binarismo, e a inserção de mulheres é mudar um pouco essa cultura, a forma como as coisas são vistas dentro desses campos. Então, de fato, tudo que permeia tecnologias digitais tem poucas mulheres, mas, acho que elas estão aí pra mudar o ponto de vista e como as coisas são desenvolvidas.

 

Eu sempre gosto de falar de uma bióloga, Lynn Margulis, ela foi casada com o Carl Sagan, um grande físico. Ela demorou um bom tempo pra ter a teoria dela aceita (a teoria da endossimbiose, que é a que cloroplastos e mitocôndrias tem o DNA diferente das células que elas estavam inseridas), e ela estava batendo de frente com uma teoria que é muito da visão masculina. Então, essa questão não é só dos seres humanos, é do reino animal como um todo: os machos estão sempre disputando e brigando por fêmeas – e ela foi contra o darwinismo, a teoria evolucionista de que o mais adaptado é o que vai se dar bem – isso coloca uma disputa entre o seres da mesma espécie. Ela trouxe uma visão, dentro da ciência, completamente diferente de que as espécies não precisam evoluir apenas competindo, mas elas podem co-evoluir e se ajudar, o que é uma visão muito mais feminina. E, por muito tempo, a gente sempre teve essa questão da teoria evolucionista desse jeito e, só de trazer que dá pra se evoluir de outra forma, já é uma visão completamente diferente e que mudou a visão da ciência como um todo.

 

Ter mulheres nesses campos significa mudar as visões que estavam muito bem estabelecidas. A mulher tem essa coisa mais da colaboração, do maternal, do cuidado, e a gente consegue inserir olhares diferentes dentro de áreas muito bem definidas como da ciência, tecnologia, que têm olhares muito masculinos. Ter mais mulheres significa mudar como esses campos atuam.

 

Sim, achamos também que a inserção da mulher nesses campos é importante para que outras mulheres tenham referências femininas em áreas que são predominantemente masculinas.

 

É bem isso que você colocou. De fato, a gente acaba não almejando certas coisas porque, principalmente, o que está relacionado à exploração parece que o homem foi primeiro, então só se tem referências masculinas – desde a Ciência, Arquitetura, Design: se você pensar em grandes designers aqui no Brasil, temos a Lina Bo Bardi e o resto são todos homens; até mesmo na Arquitetura, que forma 3 vezes mais mulheres que homens, se eu parar pra pensar em grandes arquitetas, tirando a Lina, a gente sempre vai nos caras, é impressionante.

 

Faltam referências, e não é porque não tem mulher boa. Tem! Só que a gente realmente não conhece, essas coisas não chegam a nós. É quase como se o apagamento disso proporcionasse um maior controle dos homens em perpetuar isso, afinal, perder privilégios não é fácil, então a gente acaba não tendo ajuda para que essas mulheres sejam mais conhecidas.

 

De que forma você acha que a cultura maker, tendo em vista que ela preza pela coletividade e o compartilhamento de ideias, pode ajudar a mudar esse panorama?

 

Acho que pode ajudar bastante essa visão feminina, maternal, de cuidado, enfim, acho que a cultura maker é uma cultura bem feminina e feminista, porque quando a gente lida com as coisas palpáveis (objetos, hardwares), a gente sempre precisa de um cuidado maior. Quando a gente desenvolve as coisas, passamos a criar uma relação afetiva com esses objetos: a gente se coloca um pouco neles, e eles passam a fazer parte um pouco da gente também. Então, essa relação com os objetos é extremamente afetiva e de cuidado. É muito diferente você ir lá e comprar uma coisa: você dá um valor, mas, se você faz essa coisa ,a relação é completamente outra.

 

A cultura maker, ela vai resgatar um pouco desse respeito com a matéria, desse cuidado, que é bastante importante. Eu vejo a cultura maker como algo muito feminino, maternal; de cuidado de si, dos outros, do espaço. (...) A gente acaba desrespeitando os processos, até por falta de conhecimento, porque vamos na coisa pronta, e acabamos esquecendo que até aquilo virar uma mercadoria, existe um processo, inclusive, de ferrar a terra como um todo, e a nossa relação com o que a gente está consumindo é muito diferente.

 

Acho que a mulher, por ter essa visão de maior respeito e cuidado, acaba mudando a forma de como as coisas são feitas e as relações que são criadas. Principalmente, essa relação de poder e desconhecimento para que as coisas se perpetuem nesses apagamentos todos, não só da mulher, mas também dos processos. A cultura maker vai acabar ajudando, pois quase que força um outro tipo de relação – com o ambiente e com as outras pessoas – muito mais colaborativa, de suporte, e compartilhamento.

 

Você já vivenciou alguma fragilidade/dificuldade/impedimento por ser mulher e trabalhar/pesquisar sobre sexo e tecnologia?

 

Sim, vários. Toda mulher já sofreu algum tipo de impedimento em algum momento. Acho que até por vir de uma cidade do interior, de uma situação financeira e territorial muito específica, é uma coisa que eu venho arrastando. Eu era uma pessoa extremamente tímida, comecei a conseguir falar com as pessoas nos últimos anos. Era quase como se eu tivesse que pedir desculpa pela minha existência. Mesmo na própria faculdade, só o fato de ir bem  “ah, você tinha alguma coisa com o professor”. E isso desde sempre – acho que a gente acaba sofrendo em diferentes âmbitos coisas muito semelhantes – então até acabo tendo muito cuidado, sempre muito vestida, pra não levantar nenhuma suspeita.

 

Quando eu comecei a trabalhar com sexualidade, aí piorou mais ainda, porque as pessoas começaram a criar visões, sobre mim, absolutamente inexistentes. É muito engraçado porque, principalmente na internet que a gente tem a possibilidade do anonimato, eu comecei a receber muitas coisas que eu pensava: mas de onde estão tirando isso? Esse anonimato dá um tipo de liberdade muito grande, e por um momento eu fiquei um pouco assustada com isso. Mas, aí pensei: bom, já que isso está acontecendo, o que que isso significa? o que eu posso tirar de dados de tudo isso que eu to recebendo?

 

E eu comecei a ter um outro olhar sobre isso. E como é algo que está, a princípio, me incomodando, eu vou fazer com que isso se torne uma possibilidade de entender o motivo das pessoas se comportarem dessa maneira – porque as pessoas se colocam em um lugar de liberdade muito grande; é como você passar na rua e alguém falar alguma coisa. O que que promove, intensifica ou justifica, principalmente homens, a terem esse tipo de comportamento em relação a nós?

 

De fato, acho que as pessoas criam muito imaginários. Principalmente quando relação alguma existe, é mais fácil das pessoas viajarem na maionese e criarem as próprias realidades. As pessoas achavam que me conheciam simplesmente pelo fato de eu estar falando de uma coisa que as pessoas não conhecem, porque, apesar de ser uma coisa absolutamente natural fazer sexo, se reproduzir, etc – é quase um instinto natural do ser humano entender – na real a gente não entende, e é por isso que é um grande tabu e vai continuar sendo por muito tempo: justamente porque as pessoas entendem esse processo muito na superficialidade, muito no funcionalismo, né.

 

Quando a gente pensa no Design: o Design sempre foi muito funcional, prático. E, eu acho que até uma coisa que vem vindo forte é como que a gente faz as coisas funcionais, mas ao mesmo tempo, incríveis, prazerosas, com uma função estética. E o sexo sempre foi visto de uma maneira muito funcional: ou era pra reproduzir ou para dar prazer –  e um prazer que você acha que é só aquilo que você consegue sentir, mas, nosso corpo tem uma potência muito grande, ele inteiro é um grande sensor – até nisso, as pessoas acabam desconhecendo muito o potencial que o nosso corpo tem de sentir.

 

Então, quando uma mulher vem e fala de questões científicas relacionadas a um tema que ainda é um grande tabu, isso acaba intimidando as pessoas e criando imaginários. Por um momento, eu até pensei em desistir, mas eu pensei: não, vou tentar fazer isso – que é uma coisa que está me desestimulando – se tornar uma coisa maior, para também ajudar outras mulheres. Acho importante a gente pegar isso que nos torna mais frágeis, diante de todas essas adversidades, e conseguir fazer disso a nossa força, que aí que a gente começa, enquanto mulheres, a se unir, colaborar e ajudar umas as outras.
 

Você destacaria alguma mulher que te influenciou?

 

Muitas mulheres, não só que estão vivas. Acho que duas mulheres têm me influenciado muito – e é engraçado porque elas têm essa relação forte com a biologia e com a filosofia – é a Lynn Margulis e a Donna Haraway, elas trazem questões que permeiam tudo. Eu que passei bastante por esses conhecimentos ditos ciências humanas, acabamos sempre estudando o homem pelo homem sem as relações com os outros seres vivos, e quando eu comecei a estudar biologia e entender a relação de todos os seres vivos, as coisas começaram a se juntar. Claro que existem mulheres incríveis em todas as áreas, principalmente ciências humanas, mas, essas duas têm me influenciado de maneira muito forte.

2018 Projeto D.elas: Projeto de conclusão de curso - Faculdade de Artes Arquitetura e Comunicação UNESP

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