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Cissa é graduada em Engenharia da Computação e é membro do comitê organizador do evento É DIA DE JAVA. Também fundou, em 2010, a comunidade #GarotasCPBr, que tem como um dos principais objetivos auxiliar e orientar as calouras da Campus Party Brasil. Nessa conversa, Cissa conta um pouco mais sobre a criação dessa comunidade e a importância de iniciativas como essa. Além disso, ela fala sobre o apagamento das mulheres na história da programação e como tudo isso está vindo à tona agora, graças à luta das mulheres.

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Você é uma das fundadoras da comunidade GarotasCPBr. Você pode nos contar um pouco sobre

essa iniciativa?
 

Bom, a comunidade surgiu por meados de setembro de 2010. Eu estava estudando na UFSCAR  – na época, fazia mestrado na área de Computação – e tinha decidido, há algum tempo, que queria ir para a Campus Party, mas eu tinha um pouco de receio por ser um evento grande com um número massivo de homens. Naquela epóca, o twitter era muito mais utilizado que hoje, e por lá fui conhecendo algumas pessoas que também iam: algumas meninas que estavam indo pela primeira vez, algumas que estavam indo totalmente por conta e sozinhas e de todos os estados do Brasil. Nessa busca por meninas que iriam para o evento, algumas de nós vimos a necessidade de criar um meio de identificação, porque existiam outras meninas que estavam indo e também tinham as mesmas dúvidas que a gente, então, criamos a #GarotasCPBr. Foi questão de uma semana, nem isso, já tínhamos um conjunto de quase 300 meninas aglomeradas ali, do Brasil inteiro, conversando, se apoiando no sentido de que se acontecesse qualquer coisa, com qualquer uma, era só gritar para a outra ou mandar um tweet. A sorte é que nunca aconteceu nada, foi tudo muito tranquilo.

 

Durante o evento, nós notamos uma participação muito pequena de meninas e, antes do evento, nós pensamos em um monte de coisas que poderíamos fazer (...) e começamos a falar sobre um monte de assuntos interessantes – e percebemos que existe um monte de mulher muito competente na área, mas que não têm nenhum reconhecimento (ou pouco reconhecimento), e eu comecei a ouvir histórias realmente muito macabras de tudo aquilo que a mulher sofre no mercado de trabalho. Foi a partir, então, das discussões no twitter e nos grupos, que a gente começou a perceber essas coisas que aconteciam e vimos que precisávamos levar mais mulheres para o evento, e incentivar mais meninas a ir.

 

Um dos objetivos da comunidade é aglomerar as meninas que vão e ajudar. E o outro objetivo é o empoderamento feminino. Ao longo desses quase 8 anos, é isso que a gente tem feito: temos tentado ajudar quase todas as calouras que vão para a Campus Party pela primeira vez e também levar as experiências das meninas que estão na comunidade para todo mundo, compartilhar o nosso conhecimento, adquirir novas experiências. E tem sido muito legal.

 

Lemos uma matéria de uma menina programadora que falava sobre como em eventos assim você não se sente oprimida só por ser mulher, mas por ser mulher e ser minoria.

 

Você se sente um pouco deslocada – talvez seja a palavra – e fica com um pouco de medo. É interessante, semana passada eu estava em um evento em São Paulo e um dos palestrantes falou que brasileiro tem mania de se rebaixar para quem é dos EUA – eu vejo que na tecnologia, engenharias e exatas em geral, acontece a mesma coisa com a mulher: o homem está falando e a mulher naturalmente se sente menos, se sente com uma autoestima menor e se sente rebaixada, e isso não pode acontecer.

 

Na verdade, nós estamos de igual para igual. Não é só porque o cara sabe um pouquinho mais do que eu, que eu sou menos competente do que ele. E esse foi um assunto que a gente discutiu muito em várias mesas redondas que fizemos durante esses anos todos nos eventos: a questão de que a mulher não quer ser mais que o homem, nós queremos ter as mesmas oportunidades, o mesmo tratamento, mesmo salário, etc. É questão de equidade mesmo.
 

Durante o seu trajeto profissional você vivenciou algum tipo de fragilidade, dificuldade ou impedimento por ser mulher?
 

Olha, graças a Deus comigo nunca aconteceu, o máximo que sofri foi um probleminha com um professor, mas isso foi uma coisa muito pequena. Uma coisa que influencia muito nisso é a nossa criação. Eu sou de uma família muito simples do interior de SP, tenho muitos primos, muitos tios, convivi com muitos homens. Essa convivência, desde cedo, com um monte de moleque te transforma um pouco e você entra naquele mundo e não percebe muitas coisas que acontecem – inclusive preconceitos, que você acha normal e às vezes até começa a se comportar como. Acredito que, se eu sofri alguma coisa desse tipo, eu não sabia que eu estava sofrendo porque eu não tinha essa consciência que adquiri de 12 anos para cá. Hoje, amadureci nesse sentido e sei diferenciar, mas eu conheço muitas histórias de muita gente que sofreu coisas absurdas.

 

Tendo em vista que a área da tecnologia é predominantemente masculina, qual é a importância de levar essas discussões para além do campo feminino?

 

Olha, eu vou falar uma coisa para vocês: a gente tem que conhecer o passado para entender o presente e pensar em soluções para o futuro. Hoje, essa área é predominantemente masculina, e têm muitas mulheres que falam que os homens roubaram a tecnologia das mulheres. Inicialmente, quem realmente trabalhava na área de computação e de desenvolvimento de algoritmo, eram as mulheres. Ada Lovelace foi a primeira programadora do mundo, desenvolvendo o primeiro algoritmo do mundo, então, se procurarem a história dela, vão ver que ela precisou ser omitida. Ela fez tudo e não recebeu os créditos, e isso aconteceu com muitas pesquisadoras que fizeram muita coisa e às vezes há o pseudônimo masculino por conta desses problemas de machismo e paternalismo. Então, é uma gafe muito grande falar que computação e tecnologia são coisas de homem – mentira. Se vocês assistirem aquele filme “Estrelas Além do Tempo”, vocês irão ver que, na verdade, as mulheres que mais contribuíram para o desenvolvimento da tecnologia e computação no mundo foram as mulheres negras. Também tem aquele filme que conta a história de Alan Turing – que é considerado o pai da computação – em que ele contrata uma mulher para trabalhar com ele: uma matemática que tem um talento excepcional e o ajudou a criar os primeiros algoritmos. Se for parar para pensar, ela também deveria ser considerada a mãe. Tem muitas coisas que foram feitas por mulheres que, agora, estão vindo à tona, porque as mulheres resolveram abrir a boca e as famílias dessas mulheres que fizeram a diferença também.

 

Mas, os desafios ainda são enormes e essa luta não vai terminar tão cedo. Quem quiser começar nessa área e permanecer, eu digo que não tem que desistir só porque é a única mulher na sala, só porque é a única mulher que está fazendo um curso de tecnologia ou porque tenha sofrido algum tipo de assédio ou preconceito. Não é só porque você sofreu tudo isso que você vai desistir. Eu acho que é justamente por essas situações que devemos persistir.

 

Você acredita que hoje há um senso de comunidade entre as mulheres, no geral?

 

Está se criando esse senso de comunidade. Não acredito que esse senso de comunidade entre as mulheres já seja 100%, pois ainda existem mulheres machistas e também existem muitas mulheres que não entendem o motivo do movimento que está sendo formado há alguns anos. Como eu falei, tem muito a ver com a criação, o ambiente [...] e a realidade em que ela está inserida.

 

Dentro da minha realidade, isso já é uma coisa bem clara. Participo sempre da Campus Party (inclusive, fui esse ano). Lá tinham inúmeras comunidades de mulheres e nós nos juntamos e conversamos, juntamos meninas de comunidades diferentes para dar palestras. Participo também de vários grupos no Facebook e vemos uma convergência muito grande entre mulheres: umas ajudando as outras a crescerem juntas para atingirem seus respectivos objetivos. Um exemplo que aconteceu comigo: eu publiquei uma vez no grupo que estava desempregada e vieram umas 6 mulheres falarem comigo sobre oportunidades, além de mulheres que comentaram no próprio grupo. Esse senso de comunidade na tecnologia de informação já é realidade.

 

[...] Como eu falei, esse é um trabalho que não tem fim – sempre terão pessoas novas entrando e elas precisam aprender o que é isso de comunidade e de mulheres se ajudando.

Precisamos quebrar esse paradigma de que as mulheres querem ferrar umas com as outras, isso não pode, tem que acabar. E é uma coisa que está embutida na nossa cabeça desde que nascemos, não é uma coisa que a gente escolhe: isso é passado de geração em geração e é isso que tem que mudar. Quando eu falo de cultura eu estou falando disso – de mudar o nosso próprio comportamento dentro das nossas próprias casas. Vocês vão ser mães e vocês terão que passar para os seus filhos outra visão de mundo para eles fazerem a coisa certa. Assim que muda de verdade, esse “lance” de pequenas coisas é extremamente importante.

 

Mulheres que te inspiram na sua área:

 

Eu fazia parte da comunidade JAVA em 2004-2005 e uma das mulheres que eu conheci naquela época e que me inspira até hoje é a Yara Senger – mulher brasileira e atual. Conforme o tempo foi passando eu fui descobrindo coisas e as mulheres foram aparecendo. [...] Ada Lovelace é referência para toda a comunidade técnica de computação. E também a mulher maravilha, que é símbolo do feminismo desde a década de 40, quando surgiu nos quadrinhos, e sempre foi referência da luta feminina.

"A questão de que a mulher não quer ser mais que o homem, nós queremos ter as mesmas oportunidades, o mesmo tratamento, mesmo salário, etc. É questão de equidade mesmo."

"Quem quiser começar nessa área e permanecer, eu digo que não tem que desistir só porque é a única mulher na sala, só porque é a única mulher que está fazendo um curso de tecnologia ou porque tenha sofrido algum tipo de assédio ou preconceito. Não é só porque você sofreu tudo isso que você vai desistir. Eu acho que é justamente por essas situações que devemos persistir."

2018 Projeto D.elas: Projeto de conclusão de curso - Faculdade de Artes Arquitetura e Comunicação UNESP

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